Sêo Lió, meu herói

Alcides Kruschewsky
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Sêo Lió

Meu herói, uma das pessoas mais importantes da minha vida, Lió Dantas era a encarnação da bondade. Seu carinho e cuidados conosco não deixavam lugar para qualquer suspeita da sinceridade. "São meus netos", dizia.

Chegou no Rio do Braço muito cedo, aos 17 anos, vindo dos grotões das Minas Gerais, onde aprendeu a lidar com os animais, o gado e as montarias.

O aboio de Lió era uma linda ópera no entardecer, e aquele grito afinado resvalava na serra e voltava dobrado num eco, um cântico mavioso ainda presente na minha memória. O cenário se completava com o gado atendendo ao chamado e vindo, mansamente, do outro lado do rio, para passar a noite junto ao curral, em frente ao casarão, onde era apartado para a ordenha do dia seguinte.

Muito me ensinou, desde a montar - o que eu fazia à pelo e sem rédeas - a arreiar cavalos e nadar, às preciosas lições da vida. Até que eu dominasse a arte da montaria, não sossegou, queria que eu estivesse seguro. Os meus apetrechos de montaria ficavam separados dos outros, guardados na sua casa. O meu cavalo, no Rio do Braço, era conhecido como o cavalo de Lió.

Sabia tudo sobre os animais, era meio veterinário, castrador, conversava com os bichos, chamáva-os pelos nomes e estes o entendiam e atendiam. Os dali, quando tinham algum problema com algum animal o procuravam para a cura. Assistimos alguns filmes de faroeste e ele ia ao delírio.

Pagador de promessas, ia à Lapa todos os anos e registrava cada ida naqueles "monóculos" que tinham a fotografia de negativo, dentro. Amaciava os assentos de sua casinha com o couro de lã de carneiro.

Era o melhor de todos os vaqueiros, um exímio adestrador, "amansador de burro brabo, ensinava os cavalos a pisar. Se o rio estava com "água nova", pedia a proibição das crianças do banho de rio, logo na nossa chegada .

Meu herói era assim, se vestia para a labuta assim, cheirava bem, sua roupa tinha o perfume defumado do ferro de passar à carvão; colocava raízes de sândalus na brasa e sob os colchões de palha de sua casa, onde nem conto quantas noites dormi um sono feliz. Cedía-nos sua cozinha simples de fogão de lenha, para os nossos felizes e desastrados "cozinhados".

Tinha destreza, conhecimento e autoridade. Na sua humildade tornou-se uma personalidade muito querida na localidade. Todos o chamavam de Senhor, as crianças o adoravam e era muito comum chamá-lo de "padim" (padrinho). Os passantes o cumprimentavam constantemente:

" Bom dia cumpade, Lió" ! - Êla, cumade! , respondia. Tinha afilhados de perder a conta. Outra imagem comum era a do seu trabalho com alguma criança dali, ao seu lado, acompanhando cada passo.

Neves era minha queridíssima "mãe preta" e eu confesso que queria casá-los. Os dois riam-se muito da minha intenção.

A doçura de Lió nos enternecia. Ao seu lado nos sentíamos seguros. Às despedidas, chapéu de encontro ao peito, declamava: "Eu fico aqui cheio de dor, com meu coração pesado, cheio de saudade!"

Usava sandálias de couro feitas por ele mesmo, fumava cigarro de palha de milho e era uma maravilha vê-lo fazendo-os, desde o corte delicado do fumo de rolo. Quem montava, adestrava ou simplesmente o conhecia , o admirava. Costumávamos madrugar para vê-lo no curral, na ordenha. Mais tarde, no café da manhã, o seu show com os pombos que vinham comer o xerém no seu enorme chapéu de palha.

Ah, Lió aos meus olhos era um gigante! Depois, já sentindo o peso da idade, com o reumatismo a castigá-lo, passou a cuidar dos jardins.

Lió preparou uma roça, um pomar para deixar de lembrança, onde plantou as frutíferas que pode, colocou lindos banquinhos rústicos, regatos para irrigação com pontezinhas, tudo muito gracioso, à sua memória. Após sua chegada na Fazenda Boa Vista, do meu avô, nunca mais saiu.

Meu herói era humilde, dedicado , valente, forte, verdadeiro, amoroso, fiel e digno.

Agradeço a Deus a oportunidade dessa maravilhosa convivência. Sempre o tive assim, como um herói, mas foi aos poucos que a vida foi me ensinando a dimensão da sua importância para todos nós e , especialmente, para mim.

Onde quer que esteja, SÊO", como sempre o chamamos, minha gratidão por tanto bem que me fez. Nunca o esqueci! Deus esteja contigo!